I.
Os delírios
do desenho- palavra: mergulhados no esboço daquele rio...
“Porque o desenho
é, por natureza, um fato aberto. Se é certo que objetivamente ele é também um
fenômeno material, ele o é apenas como uma palavra escrita.”
ANDRADE,
Mário, Do desenho[1]
Pensar
a infância do traço nos lança, entre águas e sonhos, num movimento de
compreensão do caráter antiplástico do desenho, como Mário de Andrade nos
aponta. Para tanto, surge a comparação com a palavra, tanto no que se refere à
materialidade do significante, quanto ao que se refere à abertura plurissignificativa
semântica. Neste sentido, Manoel de Barros nos diz da infância da palavra. Na
lógica desta desaprendizagem poética do mundo tal qual um enunciado racional e
estático: “O sol tem três letras/ O inseto é maior./Porque o inseto tem
seis letras e o sol tem três./ Logo o inseto é maior.” (BARROS, Manoel de [2]). A
palavra “inseto” compreendida pelo significante se torna maior que a palavra
“sol”, afinal, possui seis letras, enquanto sol apenas três. Desta forma,
nestes versos, a palavra, numa das possíveis leituras, esvaziada de seu sentido
semântico, inaugura um ‘olhar fontana’, esse olhar de fonte que Manoel também nos
conta. Mas sabemos que, no que se refere ao caráter semântico, a palavra ‘sol’,
assim como ‘inseto’, quando escritas no papel, ultrapassam sua materialidade
física, queimam e zumbem, respectivamente, no devaneio do sonhador que as lê.
Da mesma maneira, o desenho, assim como a palavra, também irrompe para além de
suas bordas físicas, o traço de um rio flui para fora do papel, molha os dedos
do sonhador que o observa e deságua na circulação dos corpos, numa redondeza do
ser do homem e do ser do mundo, como diz Bachelard [3].
Para além de possíveis dicotomias, a infância do desenho e da palavra nos
possibilita experienciar o encontro, a dialética entre o significante e
significado, partes do mesmo ser. De
maneira análoga, podemos pensar o diálogo entre corpo-alma, poema- poesia,
papel-desenho, entre outros.
“A água corria
pelos seus pés agora descalços, rosnando entre seus dedos, escapulindo clara
clara como um bicho transparente. Transparente e vivo...”
LISPECTOR,
Clarice, Perto do Coração Selvagem [4]
Ainda
mergulhados no esboço daquele rio, como sonhadores que somos, compreendemos que
as águas dos desenhos-palavras são incessantes fluxos de morte-vida, rio de
Heráclito. Este bicho transparente e vivo, como diz Clarice, manifesta,
especialmente nas linguagens artísticas, o encontro entre a imensidão íntima do
ser do homem e a infinitude do ser do mundo. Neste movimento de criação, as águas
dos artistas somente alcançam para além das paredes do espectador-leitor, se
escapulirem da sua verdade. Afinal, como Alberto Manguel, no seu livro Lendo
imagens, nos diz “...as imagens, assim como palavras, são a matéria de
que somos feitos.” [5].
É nesse sentido que a infância do traço liberta o criador para além do estigma
do desenho realista ―
de maneira geral, eleito como paradigma da sabedoria de desenhar ― e nos lança nas suas águas
profundas e poéticas. Para além de dicotomias de julgamentos como desenhos
‘belos’ e ‘feios’, as águas profundas do sonhador-artista, expressas através da
arte, nos deságuam na descoberta do mundo. Apenas imersos neste espaço do
espanto inaugural, os traços sonham.
II.
Dentro
da casa que vive no sonho, abro a janela...
“Aprendi com Rômulo Quiroga (um pintor
boliviano)[6]:
A expressão reta não sonha.
Não use o traço acostumado.
(...)
O olho vê , a lembrança revê, e a imaginação
transvê.
É preciso transver o mundo.
Isto seja:
Deus deu a forma. Os artistas desformam.
É preciso desformar o mundo:
Tirar da natureza as naturalidades.
Fazer cavalo verde, por exemplo.
Fazer noiva camponesa voar – como em
Chagall.”
(BARROS, Manoel de ) [7]
“Vermelhos secos”, sépia, conté-branco e
aquarela sob papel jornal, processo de ilustração feita a partir da observação
de modelos vivos, na aula de Desenho I, da professora Marina de Menezes.
“As
janelas que não existem invadidas de pássaros, teus.” , sépia, conte-branco e
aquarela sob papel jornal, processo de ilustração verbo-visual proposto na aula
de Desenho I, da professora Marina de Menezes.
Tinha conversado com a minha Professora
Marina de Menezes na tarde que retomei essas propostas de ilustração. Não sei
por qual motivo me vi tentando encontrar a tal expressão reta que não sonha,
como Manoel em seus versos nos conta. Tarefa
que tornava o esboço do rio, um objeto de observação, apenas. Não há problema
na observação, é parte importante do processo da criação. Mas não se pode
finalizar um desenho (se é que se pode dizer que existem desenhos
finalizados...) sem o criador atravessar suas águas profundas e deixá-las, de
alguma maneira, respingar em seus traços. Em busca dos traços que sonham,
incentivados pela Marina e Manoel, retomei, sem medos, os esboços das
propostas.
“As janelas que não existem invadidas de
pássaros, teus.”, tenta ir de encontro a uma proposta de criação verbo-visual.
Nas minhas águas, os vermelhos simbolizam os pássaros que invadem as nossas
janelas que não existem, sejam estas o coração, os sentimentos, entre outras
possibilidades. O embaçado corpo da figura feminina treme entre palavras, como
num sonho. Numa das possíveis leituras, o seu coração se junta ao traço simples
que acompanha seu braço e quadril. Assim, no devaneio do sonhador, forma a
possibilidade esboçada de um outro corpo a invadir, subitamente, a dançarina, como os
pássaros.
“Vermelhos
secos” me emocionou antes de existir no papel, pelo simples gestos de amor
entre os corpos dos modelos vivos, algo se moveu dentro de mim. O esboço rápido
de 7 minutos foi um registro deste gesto de amor. Quando escolhi esse desenho
para retomar o processo de criação, esse sentimento irrompeu meu olhar, um
história se criou entre os dois. No meu sonho, dentro do desenho, os amantes conversam
silêncios brancos, enquanto os vermelhos secos queimam seus corpos...
“Tudo isso só
existia em sua imaginação; mas bastava para que essas pequenas posses
quiméricas adquirissem realidade aos seus olhos.”
BACHELARD, Gaston, A poética do espaço [8]
Referências bibliográficas
ANDRADE, Mário, Do desenho, Editora Itatiaia, Belo Horizonte, 1984
BACHELARD, Gaston, A poética do Espaço, Ed. Martins Fontes,
2ªed., São Paulo, 2008
BARROS, Manoel de, Histórias da unha do dedão do pé do fim do mundo in http://www.youtube.com/watch?v=a-HDwM3jebY
(acessado em 04/07/2013)
BARROS, Manoel de, trecho do poema As lições de R.Q., Livro sobre
Nada, Ed. Record, 1996
DERDYK, Edith, Formas de pensar o
desenho, Ed. Scipione, São Paulo, 2004.
LISPECTOR, Clarice, Perto do Coração Selvagem, Ed. Francisco
Alves, 14ª ed., Rio de Janeiro, 1990
MANGUEL, Alberto, Lendo imagens, Companhia das Letras, 6ª
reimpressão, São Paulo, 2011
[1] ANDRADE, Mário, Do desenho,
Editora Itatiaia, Belo Horizonte, 1984, pág. 66
[2] BARROS, Manoel de, vídeo- poético
Histórias da unha do dedão do pé do fim
do mundo
[3] BACHELARD, Gaston, A poética do
Espaço, Ed. Martins Fontes, 2ªed., São Paulo, 2008, págs. 235-242
[4] LISPECTOR, Clarice, Perto do
Coração Selvagem, Ed. Francisco Alves, 14ª ed., Rio de Janeiro, 1990, pág.
48
[5] MANGUEL, Alberto, Lendo imagens,
Companhia das Letras, 6ª reimpressão, São Paulo, 2011, pág.21
[6]
“Nota: Um tempo antes de conhecer Picasso, eu
tinha visto na aldeia boliviana de Chiquitos, perto de Corumbá, uma pintura
meio primitiva de Rômulo Quiroga. Era um artista iluminado e um ser obscuro.
Ele mesmo inventava as suas tintas. Trazia dos cerrados: seiva de casca de
angico (era seu vermelho); clados de lagartas (era o seu verde); polpa de
jatobá maduro (era o seu amarelo). Usava pocas de piranha derretidas para dar
liga aos seus pigmentos. Pintava sobre sacos de aniagem. Mostrou-me um ancião
de cara verde que havia pintado. Eu disse: mas verde não é a cor da esperança?
Como pode estar no rosto de ancião? A minha cor é psíquica – ele disse. E as
formas incorporantes. Lembrei que Picasso depois de ver as formas bisônticas na
África, rompeu com as formas naturais, com os efeitos de luz natural, com os
conceitos de espaço e de perspectiva, etc etc. E depois quebrou planos, ao lado
de Braque, propôs a simultaneidade das visões, a cor psíquica e as formas
incorporantes. Agora penso em Rômulo
Quiroga. Ele foi apenas e só uma paz na
terra. Mas eu vi latejar rudemente nos seus traços milagres de Klee. Salvo não
seja.” (BARROS,
Manoel de, trecho do poema As lições de R.Q., Livro sobre Nada, Ed.
Record, 1996, pág. 74)
[7] BARROS, Manoel de, trecho do poema As lições de R.Q., Livro sobre
Nada, Ed. Record, 1996, pág. 75
[8] BACHELARD, Gaston, A poética do Espaço, Ed. Martins Fontes, 2ªed., São
Paulo, 2008, pág. 75
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