De que nos serviria
um relógio?
Se deito em tua perna:
é dia.
Deito no silêncio:
é noite.
Se beija meus olhos e sorri:
é dia.
Se fechas os olhos para o mundo:
é noite.
Se faz cosquinha em meus segredos, secando todos ao sol:
é dia.
Se amarra as vontades aos pés dos medos:
é noite.
Quando encontramos um ipê amarelo ou um bolo de chocolate sem glúten:
é dia.
Quando não encontramos:
é noite.
Se te mordo igual passarinha ou sinto sua boca encostando na minha:
é dia.
Se a mordida de lobo é maior e mais doída:
é noite.
Se invento um faz de conta com bolas de gás coloridas por dentro dos sonhos com conversas longas sobre o mundo, madrugada a dentro:
é dia.
Se você não sonha:
é noite.
Boina vermelha, tua barba, tuas mãos tocam meus seios:
dia.
café gelado, telefone sem bateria, teus olhos com raiva, tua faca sobre o peito:
noite.
Se pelo corpo acho teu beijo, tuas mãos, teu nome:
dia.
Se encontro teu rasgo:
noite.
Se abotoas meu casaco de velhinha em ruelas que levam à Cidade Nova:
dia.
Se o frio venta os sonhos:
noite.
Se enfeita a janela que se abre em minha barriga de borboletas azuis:
dia.
Se as borboletas secam:
noite.
Se entorna e bebe minha água sobre teus desejos:
dia.
Se encolhe as vontades em banalidades:
noite.
Se me acorda com beijo nos olhos:
dia.
Se teu silêncio pesa em minhas pálpebras:
noite.
Mãos dadas, hall do prédio verde, velhinha que conta histórias do seu tempo:
dia.
besouros que rondam, nossa história em branco:
noite.
Quando uma nuvem toca o som do teatro mágico e daquela banda antiga:
dia.
Quando a música é angustia:
noite.
Se ligas numa hora de pijamas e livros:
dia.
Se puxa o alarme da dúvida:
noite.
Se teus olhos anunciam infindos e mistérios por onde me perco:
dia.
Se me lançam ao precipício:
noite.
Se um vaga-lume que sonha em ser artista desenha um poema no céu movendo pequenas lâmpadas e estrelas:
dia.
Se as panteras nos rodeiam na escuridão:
noite.
Se um ipê amarelo guarda iluminado o nosso beijo:
dia.
Se uma infiltração abre entre nossos dedos:
noite.
Se você me espera na porta das palavras num sábado quente:
dia.
Se as heras cobrem a espera:
noite.
De que nos serviria
um relógio?
(Poema inspirado no poema relógio, de Ana Martins Marques no livro Da arte das armadilhas)
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