jeudi 26 mai 2011

Vestígios


* Livre adaptação do poema “O caso do vestido”, de Drummond






A fé estala à porta, o jornal esfria a mesa.
Num vento fino de areia, entra à casa uma história vestida de renda e espera, um tal caso do vestido, da vizinhança, conhecido.
Não pede licença e se instala.


A cada passo ruidoso, um rastro de fim, vestígios de palavras que com tanto ruído, calou-me para ouvi-lo. Em seu vestido, trazia no colo mui devassado, um antigo relicário. Dentro dele, um retrato de família a espalhar sobre o tecido o incomodo de existir.


Insólita criatura que se arrastava pela minha casa entre corredores e madrugadas. Às vezes, parecia vapor de memória que se apaga. Às vezes, surgia tão nítida, densa aos olhos, que, aos seus desejos, se entortavam azulejos, quadros e gritos. Depois, lúcida, como quem pede desculpas, desaparecia.


Li, no seu corpo de tempo, o tal caso esquecido: a paixão, feto de sentimento brusco, irrompeu aquele retrato da família do relicário. Assim, entrou na fotografia, a outra, mulher de uma malícia que a beleza desmentia. Por vontade tentava, minuciosamente, arrancar a figura da esposa da fotografia, mas desta, apenas o rosto, conseguiu sobrepor. Assim, dentro do retrato, Éster, a outra, se emoldurou, vestida no vestido da antiga esposa, de mãos dadas ao “marido”. O restante da fotografia, aquela mulher do demo, não por gosto, mas por satisfação, cobriu inteiro de azul.


Pronto o retrato, eis que o amor pegou. Éster, às cegas, rodopiava no frágil tecido, como se seus passos não pesassem neste palco pregado de súbito. Colagem a desabar sobre o próprio peso e arrastar consigo qualquer vestígio de tal caso vivido.


O azul invadido de luz, descamou as saudades. Eis na fotografia, o rosto da sempre esposa, as filhas, os móveis da sala, as flores no criado- mu(n)do, tudo como antes era. O vestido fez-se novo, assim como o retrato, ao bafo de um dia que a espera despertou.


Fecho o relicário.
Ao meu lado, surgem.


Arrumo mais pratos à mesa, minha boca não diz palavra, parecia que àquela família sempre pertenci. Comiam meio de lado, e nem estavam mais velhos, “o barulho da comida me acalentava, me dava uma grande paz, um sentimento esquisito de que tudo foi um sonho”, não há vestido,nem nada, apenas o coração do instante.





Juliana nas Palavras e Fotografia

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