samedi 26 septembre 2015

Relógio

De que nos serviria
um relógio?

Se deito em tua perna:
é dia.

Deito no silêncio:
é noite.

Se beija meus olhos e sorri:
é dia.

Se fechas os olhos para o mundo:
é noite.

Se faz cosquinha em meus segredos, secando todos ao sol:
é dia.

Se amarra as vontades aos pés dos medos:
é noite.

Quando encontramos um ipê amarelo ou um bolo de chocolate sem glúten:
é dia.

Quando não encontramos:
é noite.

Se te mordo igual passarinha ou sinto sua boca encostando na minha:
é dia.

Se a mordida de lobo é maior e mais doída:
 é noite.

Se invento um faz de conta com bolas de gás coloridas por dentro dos sonhos com conversas longas sobre o mundo, madrugada a dentro:
é dia.

Se você não sonha:
é noite.

Boina vermelha, tua barba, tuas mãos tocam meus seios:
dia.

café gelado, telefone sem bateria, teus olhos com raiva, tua faca sobre o peito:
noite.

Se pelo corpo acho teu beijo, tuas mãos, teu nome:
dia.

Se encontro teu rasgo:
noite.

Se abotoas meu casaco de velhinha em ruelas que levam à Cidade Nova:
dia.

Se o frio venta os sonhos:
noite.

Se enfeita a janela que se abre em minha barriga de borboletas azuis:
dia.

Se as borboletas secam:
noite.

Se entorna e bebe minha água sobre teus desejos:
dia.

Se encolhe as vontades em banalidades:
noite.

Se me acorda com beijo nos olhos:
dia.

Se teu silêncio pesa em minhas pálpebras:
noite.





Mãos dadas, hall do prédio verde, velhinha que conta histórias do seu tempo:
dia.

besouros que rondam, nossa história em branco:
noite.

Quando uma nuvem toca o som do teatro mágico e daquela banda antiga:
dia.

Quando a música é angustia:
noite.

Se ligas numa hora de pijamas e livros:
dia.

Se puxa o alarme da dúvida:
noite.

Se teus olhos anunciam infindos e mistérios por onde me perco:
dia.

Se me lançam ao precipício:
noite.

Se um vaga-lume que sonha em ser artista desenha um poema no céu movendo pequenas lâmpadas e estrelas:
dia.

Se as panteras nos rodeiam na escuridão:
noite.

Se um ipê amarelo guarda iluminado o nosso beijo:
dia.

Se uma infiltração abre entre nossos dedos:
noite.

Se você me espera na porta das palavras num sábado quente:
dia.

Se as heras cobrem a espera:
noite.

De que nos serviria
um relógio?






(Poema inspirado  no poema relógio, de Ana Martins Marques no livro Da arte das armadilhas)





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